Dentre as principais questões da digitalização da saúde e a sonhada interoperabilidade está a padronização de dados em todo o ciclo, desde a forma como são coletados, de que maneira transitam pelos sistemas e como podem ser utilizados posteriormente para as devidas análises. Este é um dos desafios que uma nova iniciativa busca resolver: a farmacêutica Roche, a Sociedade Brasileira de Informática de Saúde (SBIS) e a HL7 Brasil firmaram um acordo de intenção para a criação de um sistema de dados em saúde.
Chamado de Board de Dados de Saúde, o grupo definiu que o primeiro tema a ser trabalhado será a saúde feminina, em especial o câncer de mama. A definição veio com base em projetos já realizados pelos players e o Board irá desenvolver ferramentas e soluções que contribuam com a padronização dos dados, a interoperabilidade dos sistemas e um melhor rastreamento de pacientes. Nos próximos 3 meses serão definidas questões de organização e a partir daí os trabalhos serão iniciados.
“A nossa ambição até 2030 é ter mais acesso, mais rápido e para mais pacientes com menos custo social. E um dos pontos que temos sempre falado é a colaboração entre diversos atores. Na parte de mercado privado fizemos um projeto de value-based health care (VBHC), na parte pública, que a gente olha que é crítica, pensamos em como contribuir para o governo e quais são seus pilares”, afirma Antonio Silva, diretor de Estratégia e Acesso da Roche.
O olhar para os dados é apenas um dos objetivos práticos da iniciativa. De forma mais ampla, o projeto pretende desenvolver soluções para alavancar o papel dos usuários como protagonistas de sua saúde, com a meta de mapear e encontrar caminhos para acelerar o diagnóstico e o acesso ao tratamento, assim como buscar mais eficiência e economia aos sistemas público e privado.
“Essa parceria traz uma perspectiva de afirmar o uso de padronizações, que são importantes para que a gente avance na estruturação da coleta de dados em saúde, fortalecer a melhor prática desde a coleta de dados em saúde até a utilização desses dados para as várias instituições, não só para Roche”, afirma Antonio Lira, presidente da SBIS. A ideia é que as soluções criadas sejam disponibilizadas para qualquer interessado, tanto da saúde pública quanto suplementar, além de possibilitar a entrada de outras empresas e entidades ao longo do caminho.
Padronização de dados
Parte do trabalho que o Board pretende desenvolver é a formatação e padronização sobre quais informações são necessárias quando falamos de determinadas condições de saúde. É uma etapa primordial para discutir o tráfego de dados pelas diferentes esferas e sistemas, buscando a interoperabilidade.
Guilherme Zwicker, diretor executivo da HL7 Brasil, explica que “se não padronizar, gera o que chamamos de explosão combinatória, porque cada vez que você for fazer isso vai ter que negociar caso a caso. Esse é um dos motivos pelos quais os ensaios clínicos são caros. Imagina o que aconteceu, por exemplo, no caso da Covid, que tinha agravos inusitados da saúde. Se não há acordos ou padrões para trabalhar com esse caso de uso, cai na ineficiência do sistema e em questões de altos custos. Consegue fazer os ensaios clínicos, mas tem que negociar um a um”.
As entidades e a farmacêutica irão elaborar nessa área quais são as informações necessárias e a forma de transferência, para que independentemente do sistema utilizado, haja uma comunicação efetiva e ganhos de eficiência no processo com um todo, sem precisar de adequações. Isso poderá ser utilizado no dia a dia de clínicas e hospitais, mas também no processo de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias.
A HL7 é uma entidade internacional referência no tema, que desenvolve padrões utilizados ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, é deles o protocolo definido para que os prestadores de serviços, como planos de saúde e hospitais, trafeguem as informações. Por aqui, a proposta é que os padrões desenvolvidos sejam usados tanto pela saúde suplementar, quanto pelo SUS.
“A ideia do Board de Dados é a gente poder inserir uma camada de goodwill nessa questão: gostaríamos de ter sistemas melhores e mais rápidos que pudessem de maneira correta transitar informações de saúde, e a gente aproveitar essa extração dessas informações de maneira a beneficiar o próprio paciente”, defende Zwicker.
No caso do câncer de mama, primeiro objeto de foco do grupo, é possível pensar e desenvolver padrões que tragam as informações consideradas necessárias para que profissionais da saúde e pacientes consigam o melhor diagnóstico e tratamento, além do acompanhamento, ao longo da jornada do usuário pelo sistema.
O diretor executivo da HL7 Brasil é categórico: “A gente quer amadurecer coisas que não existem”. Ele explica que apesar da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) ter criado regras e normas que permeiam o tema de dados em saúde, ela não está madura o suficiente para falar sobre padronização e transferência de dados, principalmente para os próprios pacientes. “Esse universo é muito grande e complexo, então há coisas que quando acontecer o problema você vai ver que está faltando informação lá na origem. Tem todo um exercício de reflexão sobre o que é o sistema ideal. Muitos deles ainda não foram escritos”, conclui Guilherme.
Case em Pouso Alegre
O case que motivou a escolha do câncer de mama como o primeiro a ser trabalhado pelo Board é desenvolvido pela Roche em Pouso Alegre, Minas Gerais: o Saúde da Mulher, com a visão de acelerar o diagnóstico e tratamento do câncer de mama. O projeto tem buscado digitalizar a jornada das mulheres dentro do sistema público do município, estimulando que gestores realizem uma busca ativa daquelas usuárias que possuem mais risco de desenvolver a doença.
Através de um aplicativo de celular as mulheres da região, entre 50 e 69 anos, preenchem informações que indicam a propensão de desenvolver câncer de mama, encaminhando para consulta com médicos ou realização de exames diagnósticos. O processo é feito com apoio de inteligência artificial e a plataforma também será utilizada por gestores e profissionais de saúde para digitalizar a jornada do paciente.
A interoperabilidade também está entre os pilares do processo. Antonio Silva, da Roche, explica que já foi possível reduzir de 10 para 3 sistemas utilizados no serviço público de Pouso Alegre, em um processo que visa integrar a saúde e facilitar o acesso às informações nas diferentes etapas do atendimento, além de ganhar eficiência.
Ainda em primeira etapa de implementação, a expectativa da Roche é ampliar o projeto para a macrorregião do extremo sul de Minas Gerais, que envolve 25 hospitais, 53 municípios, com 985 mil habitantes e público-alvo de mais de 117 mil mulheres. Todo o projeto é desenvolvido em parceria com a Federação das Santas Casas de Hospitais Filantrópicos de Minas Gerais (Federessantas), a Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB) e a empresa Techtools Health.
Esse projeto será utilizado como referência e laboratório para o Board de Dados em Saúde. Como explica Antônio Silva, “vamos olhar algumas cidades onde podemos escalonar alguns projetos que estão dando certo, que tanto a Roche como outras empresas já têm conhecimento, para que a gente acelere a priorização dessa linha de cuidado dos pacientes e também acelerar para que os pacientes façam a sua mamografia e o tratamento muito mais rápido”.
Importância do Board
O Board tem sido visto como uma importante iniciativa para modificar a saúde através de dados. Por juntar entidades especializadas e a farmacêutica, mostra o potencial de diálogo e sinergia para que outras iniciativas nesse sentido venham a surgir, assim como o desenvolvimento de soluções que tragam eficiência para o sistema.
“É essencial que todos os atores possam participar destes movimentos, porque garante uma disseminação por uma empresa muito robusta e historicamente importante na área da saúde, abraçando essa causa da perspectiva da boa prática nos sistemas de informação”, defende Antonio Lira, presidente da SBIS.
Para Antonio Silva, da Roche, o Board tem potencial não só de mostrar os caminhos, mas fazer com que o próprio SUS consiga aplicar regras que, apesar de existirem, não são contempladas no dia a dia do sistema: “Estamos gerando evidências de que fazendo projetos assim você tem ganhos reais que podem impactar não só na mortalidade, mas no diagnóstico precoce e que a pessoa viva mais, acelerando o diagnóstico e respeitando algumas regulamentações que o próprio governo tem, como a lei dos 60 dias”.
No entanto, não é só o sistema público que deve ser beneficiado. Empresas privadas também devem utilizar parte das soluções encontradas, já que a busca por eficiência e melhor assistência é de todos os envolvidos na cadeia de saúde. Mesmo fabricantes de prontuários eletrônicos, por exemplo, devem realizar modificações com base nas discussões do Board.
Segundo Guilherme Zwicker, da HL7, “esse caso de uso não é aproveitado só pela saúde pública. Ele também é altamente aproveitado pela saúde suplementar ou privada. Ele é neutro nesse aspecto, tem como objetivo a melhoria da qualidade de vida do indivíduo. A neutralidade é o caminho legítimo de fato de o paciente estar sendo atendido da maneira correta e com os recursos corretos”.